quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Foto de Niomar #1



Foto do arquivo pessoal de Niomar que foi resgatada do incêndio do apartamento na Av. Rui Barbosa. A fotografia foi tirada no estudio Harcourt, criado em 1934 e cujos retratos em preto e branco acabaram ganhando o status de obras de arte, chegando a ser considerado patrimônio francês.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moreira da Silva, O Conto do Pintor

1959. O Rio de Janeiro recebe a visita do badalado pintor francês, George Mathieu, cuja exposição no MAM contou até com a visita do presidente JK.

(George Mathieu -esq.; Juscelino Kubitchek; Niomar Moniz Sodré:
Foto do arquivo de Niomar  com manchas causadas pelo incêndio de seu apartamento)

Mathieu era famoso pelo "happening",  precursor das performances em artes plásticas. Foi assim que, em sua visita ao Brasil, ao som de atabaques, pintou o quadro registrado como a Morte Antropofágica do Bispo Sardinha diante da platéia.
As artes plásticas, a partir da visitação massiva ao MAM, tinham saído de uma redoma de inacessibilidade e caído na boca do povo, como demonstra o samba de breque de Kid Morengueira lançado em 1960.

O Conto do Pintor

http://www.youtube.com/watch?v=09FzKSo_MXo&feature=youtube_gdata_player

Moreira da Silva
Desembarquei fantasiado de pintor
No aeroporto já encontrei o Ibrahim
Fez um discurso e apresentou-me ao Dourado
que já de cara deu apartamento para mim.
- Morengueira vais levar um duplex?
- É o seguinte, eu não mereço, eu não mereço tanto. É muita gentileza sua.
Fomos direto ao Museu de Arte M oderna
A grande obra de madame Niomar
Condecorando-me com a ordem do vaqueiro
O Chateaubriand quase chegou a me estranhar
- Embaixador, deixa isso pra lá. Vossa excelência que é o admirador e protetor das artes do Brasil.
Mas ali mesmo demonstrei o meu talento
Pintei triângulos redondos e um quadrado todo oval
Eles olhavam perturbados e diziam
"Esse Moreira é um artista genial!"
Mais que depressa eu vendi noventa quadros
Depois de dar uns dois ou três em benefício
Entrevistado pelo Rúbens do Amaral
eu respondi "ora, que nada, é meu ofício"
Pintei vassouras com feitio de espadas
Pintei espadas qual vassouras
Retirei-me do local
Mas a ilustríssima platéia delirava
"Esse Moreira é um artista genial!"
Pintei um quadro só por fora das molduras
Eu joguei tinta nas paredes todo mundo achou legal
Eu comi rosas e as madames exclamaram
"Esse Moreira é um artista genial!"
E eu que não pintava nem nos muros da Central!
Mais que depressa eu vendi noventa quadros
Depois de dar uns dois ou três em benefício
Entrevistado pelo Rúbens do Amaral
eu respondi "ora, que nada, é meu ofício"
Pintei vassouras com feitio de espadas
Pintei espadas qual vassouras
Retirei-me do local
Mas a ilustríssima platéia delirava
"Esse Moreira é um artista genial!"
Fui à Brasília dei um quadro de presente ao maioral.
Era um triângulo redondo, mas Nonô achou legal.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Trecho de O Observador no Escritório, Carlos Drummond de Andrade


Neste livro, publicado em 1985, Carlos Drummond registra, na forma de diário, fatos da história política e artística brasileira entre as décas de 40 e 70. Sobre Niomar, esta prisão que cita ocorreu em 1969 em função da tentativa de publicação pelo Correio da Manhã de um dossiê sobre a censura, prisões e tortura.
CDA havia trabalhado como cronista entre 1954 e 1969 no Correio da Manhã e muito se orgunhava disso, conforme citação encontrada no trabalho de Claudia Poncione, disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_txt/er_8/er08_cp.pdf.

"(…) e uma casa como o Correio, onde se dá ao cronista liberdade de pensar, sentir e escrever ao sabor de sua fantasia – às vezes na direção oposta à da própria casa – é uma alegria para a gente. Se Paulo Bittencourt estiver me lendo, permita que quebre o padrão, assinalando a originalidade de um jornal assim. E peço a Antônio Callado que não risque o nome seu, Callado, ao passar os olhos pela matéria: nosso redator-chefe mostra que o jornal pode ser obra de arte, sem aspirar a isto." (CDA, 1956)

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Niomar por Lucio Costa

Só mesmo a Niomar
Quando a Niomar, ao assumir a direção do Museu, deliberou fazer dele a obra de sua vida, o êxito do empreendimento cuja primeira fase se inaugura, estava, ipso-fato, garantido.
Arrimada na sua fé e no Correio, investiu, destemida, numa benemérita campanha de “extorsão”. Não bastava, porém, saber como, ou quando e onde extorquir, impunha-se garantir a continuidade do processo para que a obra a realizar correspondesse por seu vulto e alcance ao tamanho desmedido da sua ambição. E foi ai que, fosse embora profana a causa, ela revelou possuir o zelo incansável, a tenacidade e a candura de um antigo missionário.
Mas a pureza de sua paixão empreendedora não exclui a esperteza. Precavida, soube atrair habilmente a sorte para o seu lado, a começar com a escolha do arquiteto, bem como dos demais colaboradores cuja dedicação é posta seguidamente à prova. Aliás, as próprias “vítimas” da campanha financeira, tocadas pela magia, acabam igualmente acumpliciadas na empresa.
Isto mostra como o fator pessoal – embora certo determinismo comande o sentido geral da existência – é decisivo no destino final das coisas.
Porém sendo eu, por índole, a negação do empreendedor (se as coisas dependessem unicamente de mim ainda estaríamos à espera do Messias) vejo a obra tomar pé e crescer de encontro à paisagem carioca com apreensiva admiração, – tal como encaro a própria vida.
 L.
24/I/58


Nota do Blog.: Documento V.C.01-02306 da Casa do Acervo Lucio Costa

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - VI

(parte V)

A partir de 1963, Niomar assumiu o Correio da Manhã que, em suas mãos, viveu sua fase mais gloriosa e, também, uma lenta agonia que terminaria com o desaparecimento de um dos mais tradicionais e independentes jornais cariocas. À sua frente, Niomar, uma mulher de elite, desenvolveu uma atuação política de confronto direto com o regime pós-64, alinhando seu jornal de tradição liberal com setores da esquerda nacional em nome do respeito à democracia e à legalidade. Uma decisão que lhe deu enorme visibilidade na cena nacional e prestígio junto aos setores progressistas da sociedade, mas pela qual pagou caro. Ao longo da década, o Correio sofreu um processo de perseguição permanente. Foi objeto de um estrangulamento financeiro capitaneado pelo governo militar, que não apenas deixou de anunciar mas, também, criou dificuldades para que a iniciativa privada, tradicionalmente dependente de financiamento estatal para seu desenvolvimento no Brasil, anunciasse no jornal. Em 1969 foi presa e processada, tornada persona non grata entre os poderosos do regime. Abriu mão de suas funções no MAM, temendo que sua presença atraísse animosidades contra os interesses da instituição que fundara e ajudara a manter por quase trinta anos. Absolvida das acusações, mas estigmatizada no país, decidiu arrendar o jornal, sufocado em dívidas, e autoexilar-se em Paris.
Em 8 de julho de 1978, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi praticamente destruído por um incêndio de grandes proporções. O fogo começou numa das salas do bloco Exposição e rapidamente espalhou-se, consumindo obras de Magritte, Dali, Klee, Matisse, Miró, Pollock, Rivera, Segall, Portinari, entre muitos outros e grande parte da produção de Rafael Torres Garcia, de quem o MAM abrigava no momento, uma exposição antológica. Niomar soube do sinistro através de um telefonema da diretora-executiva do museu na ocasião, Heloísa Lustosa, narrado por ela a Jefferson Andrade:

– Niomar, o museu pegou fogo.
– Meu Deus, Heloísa. Quando vocês vão parar de brigar?
– Niomar, o museu incendiou-se! Está todo destruído pelas chamas. Está quase tudo reduzido a chamas![1]

O choque foi tremendo. Niomar voltou em alguns poucos dias ao Brasil, pois desejava ver pessoalmente os estragos causados pelo fogo naquele que havia sido o projeto de sua vida por três décadas. Na ocasião, contou à repórter Any Bourrier, correspondente brasileira de O Globo em Paris, que se realizava, naquele momento, seu mais terrível e freqüente pesadelo. Lembrou que perdera a conta do número de vezes que havia ligado para o Brasil, expressando sua preocupação com a segurança do prédio e do acervo. Em seu depoimento à repórter, afirmou estar sob efeito de tranqüilizantes, desde que recebera a notícia. Chamou o museu de “meu terceiro filho” – anos antes, perdera o “segundo”, o Correio da Manhã que, passando por intensa crise financeira, deixara de circular em 1974. Mas Niomar não se sentia ainda vencida: na mesma matéria, falou, também, em reconstrução, retomada imediata das atividades, luta por apoio nacional e internacional para a tarefa. Desejava recomeçar, quase do zero, o projeto de dotar o Rio de Janeiro de um Museu de Arte Moderna de nível internacional.
Mas Niomar não era mais a jovem mulher que, nos anos 50, lutara incansavelmente pelo projeto do museu. Perdera seu prestígio junto aos representantes do Estado e setores da iniciativa privada que, temerosos das conseqüências das reformas de base sobre seus privilégios, apoiaram o golpe. A par disso, encontrava-se fragilizada por uma série de perdas afetivas e materiais. Primeiro, a morte de Paulo, no começo da década de 60. Depois, o processo de declínio financeiro do Correio da Manhã, durante toda a década anterior, culminando com um contrato de arrendamento em 1974, o qual se mostrou desastroso: os arrendatários deixaram de cumprir obrigações trabalhistas e, para saldá-las, Niomar teve de desfazer-se de significativa parte do patrimônio legado a ela pelo marido. Agora, em 1978, estava perdendo o Museu de Arte Moderna, o seu museu, e parte significativa do rico acervo que ajudara a reunir. Encontrava-se, naquele momento, numa posição frágil, delicada.
Em 20 de abril 1985, um segundo incêndio de grandes proporções marcou sua vida. Desta vez, o alvo foi o luxuoso apartamento da Avenida Ruy Barbosa. O fogo, provocado por um curto-circuito no aparelho elétrico antimofo de um dos armários, espalhou-se rapidamente pelo apartamento. Serviram-lhe de combustível as divisórias de madeira, mapotecas lotadas de gravuras preciosas e estantes coalhadas de livros e documentos. O luxuoso apartamento converteu-se rapidamente em cinza, ferro retorcido e fuligem. Niomar perdeu praticamente todo seu arquivo pessoal – documentos, cartas, fotos. Parte dos arquivos do Correio que ainda estava sob sua guarda – anos antes, ela doara parte deste ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro – também foi destruída. Sobretudo, Niomar perdeu uma coleção de arte que reunira ao longo de mais de trinta anos, de alto valor econômico e valor artístico incalculável.
Niomar encontrava-se, como de costume, em Paris. Há tempos, passava mais tempo na capital francesa que no Brasil, para onde vinha uma vez por ano. Dias depois de receber a horrível notícia, desembarcou no Rio de Janeiro. Encontrou apenas escombros onde um dia fora um belíssimo apartamento de dois andares – o segundo já fora vendido anos antes, por ocasião da liquidação do Correio. As fotos tiradas durante o primeiro exame que fez do que restou do local, estampadas no dia seguinte nos jornais cariocas, são contundentes. Particularmente uma, publicada na edição de 27 de abril de 1985 do Jornal do Brasil, na qual uma Niomar envelhecida, abatida, vestida com simplicidade extrema, posa, tendo à sua frente alguns poucos objetos negros de fuligem retirados do incêndio.
 Na cobertura de O Globo, 26 de abril de 1985, um repórter anônimo descreve aos leitores a cena de Niomar guiando os jornalistas pelos escombros, informando-lhes a disposição dos ambientes, os locais onde, dias antes, estavam os quadros e esculturas destruídos. Composição em Branco e Preto, pequeno óleo de Mondrian, avaliado em dois milhões de dólares, foi a pior perda. Um grande painel de Marc Rothko, estimado em um milhão de dólares, também desapareceu e, com ele, foram-se telas de Picasso, Paul Klee, Matisse, Mabe, Chagall, Portinari, entre muitos outros; esculturas de Lassau, Lygia Clark, Mario Cravo, Calder; livros e discos raros; séries completas de gravuras de Volpi; todo o rico mobiliário e peças de arte decorativa.
As apólices de seguro que protegiam as obras mais valiosas estavam vencidas.
Niomar começou a reformar o apartamento, mas, tão logo terminou de cimentar as paredes destruídas, vendeu-o, num rompante.
Após o incêndio do apartamento do Flamengo, Mauro passou a auxiliar a avó na tarefa de recuperação dos objetos restauráveis. Desenvolveu-se entre os dois uma relação de grande afeto e cumplicidade. Aos vinte e um anos, tornou-se sua companhia mais freqüente, seu braço-direito e confidente. Por isso, preserva parte significativa da memória de Niomar:

“Eu acabei conhecendo um pouco a história da Niomar – e não mais da minha avó – em virtude dela mesma ir me contando. No mês e meio que ficamos juntos em Paris, em 1986, muitas vezes a gente ficava a noite inteira acordados, ela me contando as histórias dela.”

Dos três netos, fora sempre o mais próximo da avó. Seus dois irmãos mais velhos, acredita, acompanharam o pai nos altos e baixos de sua relação com Niomar. Mauro era mais jovem e, ao contrário de Antônio Moniz Neto, havia sido poupado do convívio com a mão forte de Niomar quando esta detinha mais poder. Por sua vez, Niomar encontrou no neto mais moço um apoio afetivo num momento da vida em que já se encontrava privada de muito do que fizera dela uma proeminente figura pública. O segundo marido, Paulo, morrera. O Correio já acabara, e com ele fora-se a imensa influência política que teve ao longo das décadas de 50 e 60. Por motivos políticos, afastara-se da direção do Museu de Arte Moderna, o qual, em 1975, pegou fogo, destruindo muito daquilo por que Niomar lutara ao longo da vida. O passar dos anos apagava seus encantos físicos. Por fim, um segundo incêndio, desta vez em seu apartamento na Avenida Rui Barbosa, em 1985, destruiu a valiosíssima coleção de arte que reunira ao longo da vida. Mauro entrou em sua vida num momento em que os encantos da vida pública e privada ofereciam pouca concorrência ao amor maternal. Seu depoimento é, por isso, ao mesmo tempo precioso e comovente.

“Na verdade, eu adoro falar da minha avó. Eu penso muito nela, foi uma pessoa fundamental na minha vida. (...) Eu tive uma relação com ela que eu digo que é de avó e neto e, ao mesmo tempo, ela foi me moldando a ela (...).Nessa fase em que ela não podia mais ficar sozinha, ela tinha uma pessoa que ficava com ela e, quando essa pessoa não estava, quem ficava com ela era eu. Não podia ser outra pessoa, porque ela não aceitava mais ninguém. E, às vezes, ela falava "Ah, que chato para você ficar aqui comigo...". Mas a verdade é que nunca foi chato para mim ficar com ela. Toda vez que eu me lembro dela ou que eu estou com ela eu me sinto uma pessoa melhor. Acho que isso traduz o que eu sinto por ela.”[2]

Mauro lembra que, vaidosa, nunca gostou que a chamassem de avó. Preferiam que a chamassem pelo nome. Não suportava, também, ser tratada por “senhora”. E era econômica nas demonstrações de afeto.

“Ela não era uma pessoa que você tivesse vontade de abraçar, chamar de vovó, dar um monte de beijinhos... Niomar não inspirava isso, de maneira nenhuma. E, embora fosse baixinha, impunha muito respeito (risos).”[3]

Possessiva, hostilizava as namoradas de Mauro. O neto conta que, uma vez, passando uma temporada com a avó em Paris, ocorreu de estar de passagem pela cidade uma namorada sua. Niomar ficou tremendamente incomodada com a presença da moça como, também, recusou-se a recebê-la. O próprio Mauro acredita que Niomar transferiu para ele os sentimentos maternais não realizados na juventude com Antônio, afastado de seu convívio fisicamente, por decisão judicial; e emocionalmente, pelo duro julgamento social da época reservado a uma mulher que havia abandonado o marido para viver com outro homem. Ele conta, por exemplo, que a avó, hoje, freqüentemente o confunde com o pai.

“Ela sempre me mostrava uma foto de meu pai junto com o Oswaldinho, filho do Oswaldo Aranha, numa festa, vestido como uma dupla caipira, quando eles ainda moravam na Avenida Atlântica, e dizia: “Olha seu pai aqui”. Depois, quando começou o processo de perda de lucidez, ela apontava para a fotografia e dizia: "Olha você aqui". Eu falava: "Não sou eu, vó, esse é seu filho, eu sou seu neto. Não quero ser promovido". Mas toda vez ela repetia a mesma coisa. Ela fez a transferência. [Como se eu fosse] o filho que ela não criou, e que não abandonou. Por algum motivo, nunca abandonou.”[4]
Por que abandonaria, se àquela altura a concorrência dos encantos do mundo exterior encontrava-se, já, tão reduzida, e era agora perfeitamente conciliável com o afeto da família?
Mauro responde:

“Com adolescente, é preciso ter um pouco de paciência. E Niomar não era uma pessoa paciente. Mas comigo, ela sempre teve toda a paciência. Ela era muito acostumada a abrir mão das pessoas. Mas de mim, ela nunca abriu, nem quando eu falava coisas que a aborreciam.”[5]

Mauro acredita que o incêndio foi um golpe tremendo para Niomar, numa idade delicada. Na sua opinião, depois dele, a avó começou a apresentar alterações de comportamento que, com o passar dos anos, iriam se agravando e derivando em perda de lucidez. Niomar tem, hoje, oitenta e quatro anos. Vive num apart-hotel no Rio de Janeiro, permanentemente assistida por acompanhantes e enfermeiras. Segundo informou Antônio, o diagnóstico foi mal de Alzheimer. Apresenta alguns momentos de relativa lucidez mas, em geral, mostra intensa confusão mental. Sua saúde está estável, embora conviva com muitas limitações físicas. Niomar vive*, mas há muito deixou de ser Niomar.




[1]ANDRADE, Jefferson e SILVEIRA, Joel. Um jornal assassinado - a última batalha do Correio da Manhã. Op. cit. (p. 57)
[2]Entrevista com Mauro Moniz Sodré (02/05/2000).
[3]Id. Ibidem.
[4] Id. Ibidem.
[5] Id. Ibidem.

Fim do Capítulo III da dissertação de mestrado de Flávia Rocha Bessone Corrêa: DE COADJUVANTES A PROTAGONISTAS: A trajetória de três mulheres que trocaram os salões de sociedade pelo controle de grandes jornais brasileiros nas décadas de 50 e 60, apresentada ao Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em História em 2001.


*Nota do Blog: Niomar morreu em 2003.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - V

(parte IV)

Niomar tornou-se personagem cativa do colunismo social carioca. Além disso, tratada pela imprensa como especialista na matéria, pontificava sobre arte moderna nas seções especializadas dos jornais do Rio de Janeiro, inclusive nos concorrentes ao Correio da Manhã de Paulo Bittencourt. O Museu garantiu-lhe identidade própria na vida pública nacional. Sua atuação no campo das artes plásticas rendeu-lhe mais de vinte prêmios e condecorações, no Brasil e exterior. Em 1968, já sob forte pressão do governo militar pela oposição implacável que o Correio da Manhã, sob sua direção, fazia ao regime, foi uma das poucas senhoras da sociedade carioca presentes na recepção à Rainha Elisabeth II, durante a estada de Sua Alteza no Rio de Janeiro. Com o casamento e as oportunidades que abriu para sua atuação no ramo das artes plásticas, Niomar tornou-se uma celebridade, uma grande dama brasileira no jet-set internacional.
Entretanto, ressaltar as oportunidades de ascensão econômica e social que o casamento com Paulo eventualmente proporcionou a Niomar não implica afirmar que seu relacionamento não tenha sido marcado por intensa emoção. Para viverem juntos, tiveram que se submeter a processos dolorosos de separação, com todas as conseqüências pecuniárias e emocionais que estes acarretaram. Niomar perdeu a guarda de Antônio; Paulo afastou-se de Sybil. Optaram pelo desquite quando seu custo social era elevado, e de fato nenhum dos dois parecia indiferente a ele. Prova disso foi que se casaram no exterior – o único e precário recurso de legitimação social à união de casais impedidos de contrair matrimônio pelas leis brasileiras. Casaram-se na França, quando a moda, entre gente de menos posses, era fazê-lo no Uruguai, in loco ou na embaixada uruguaia, uma opção ainda mais em conta. A música de Billy Blanco, gravada por Dóris Monteiro na década de 50, é exemplar da relativa aceitação das ligações deste tipo pela sociedade brasileira no período:

“Você sabe, eu não aceito casamento no Uruguai.
Se você não se portar direito,comigo você não sai.
Você só me dá desgosto, fica nesse vai-não-vai.
Se você quer um encosto, vá pra casa do seu pai.”

A enorme influência política de Paulo Bittencourt e do Correio, sua posição econômica e social privilegiada, seu trânsito no grand-monde internacional e internacionalizado o puseram a salvo da estrita moralidade pequeno-burguesa, neutralizando em parte a reação social contra seu segundo casamento – ainda que não o suficiente para, por exemplo, evitar que a Justiça tomasse de Niomar a guarda do filho Antônio. Em seu testamento, pelo qual fez da companheira herdeira da metade disponível de todos os seus bens (pelas leis brasileiras, 50% do patrimônio de um indivíduo obrigatoriamente passam a pertencer, por sua morte, a herdeiros necessários, como filhos e pais), protesta contra a legislação brasileira:

“(...) Pelo outorgante testador, Paulo Bittencourt, que se acha em seu perfeito juízo e no gozo pleno de suas faculdades intelectuais (...), me foi dito que (...) se casou com Sylvia Botelho, de quem se desquitou judicialmente, tendo havido, de seu consórcio, uma única filha de nome Sybil; que, depois do desquite, casou-se, em França, com Niomar Moniz Sodré, também desquitada judicialmente, e com ela tem vivido maritalmente desde então; que, para realizar um casamento válido na França, ele testador e Niomar se divorciaram na Suíça de acordo com as leis locais e em processos regulares; que considera Niomar Moniz Sodré sua mulher e só a impossibilidade decorrente da legislação do seu país o impede de fazer reconhecer, para os efeitos da lei civil, esse seu casamento no Brasil.”[1]

Paulo e Niomar viveram uma relação de amor e, também, de grandes conflitos. O temperamento intempestivo de ambos contribuiu para que o relacionamento fosse feito de momentos de crise aguda, seguidos de reconciliações igualmente espetaculares. Luís Alberto Bahia, jornalista histórico do Correio da Manhã, no qual ingressou como repórter em 1940 e cuja redação chefiou entre 1959 e 1962, lembra as relações entre eles como muitas vezes difíceis.

“Niomar tinha grande ascendência sobre o Paulo. Paulo era um homem extremamente valente na vida pública, não tinha covardias nem tibiezas, mas com as mulheres era fraco. Deixava-se tutelar por elas. A primeira mulher dele, Silvia Bittencourt, que escrevia uma coluna política, na qual se assinava como Majoy, era o terror do jornal.”[2]

Uma das maiores crises conjugais de Paulo e Niomar ocorreu durante o segundo governo Vargas, quando o arcebispado do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Moderna da cidade disputaram uma mesma faixa de terra no recém-construído aterro do Flamengo. Em 1954, Getúlio Vargas decidiu entregar o terreno à Igreja em caráter provisório para, depois, destiná-lo à arte moderna – uma decisão que implicaria grande atraso nas obras do museu. Niomar foi à loucura. Escreveu um artigo atacando violentamente Getúlio e o pôs nas mãos de Paulo. Este, prudentemente, suavizou o tom da matéria antes de publicá-la. Como expressão de seu profundo desagrado, Niomar embarcou – sozinha – para uma temporada européia, sem data para retorno. Meses depois, Paulo pediu que a mulher fosse até Paris, para que pudessem comemorar juntos o aniversário dela. A reconciliação foi selada com um presente especial: um  apartamento na capital francesa, próximo ao Trocadero.
O ex-redator-chefe analisa a atitude de Niomar diante do Correio da Manhã:

“Ela não tinha ambições políticas próprias. Mas engajou-se no projeto do Museu de Arte Moderna de tal maneira que passou a ver a linha do jornal em função da criação se sua própria obra, que era o Museu. Quer dizer, ela sacrificou muito as relações dela com o Paulo e com o jornal em função do projeto dela, que não era sempre coincidente com o do jornal.”

Em 1961, Paulo começou a apresentar sinais do câncer de pulmão que, dois anos depois, o mataria. Daquele momento em diante, sua vida converteu-se num périplo doloroso e inútil por hospitais e médicos no exterior. O proprietário do poderoso Correio da Manhã morreu em agosto de 1963, em Estocolmo, Suécia, aos sessenta e oito anos, onde se submetera a um tratamento que Niomar considerou frio e desumano, longe de casa, dos amigos, do Rio de Janeiro. Muitos anos depois, ainda referia-se ao hospital sueco com verdadeiro horror. Foi o bastante para que se rebelasse contra Sybil, que sugerira e defendera o tratamento. Os atritos entre madrasta e enteada começaram já durante o velório de Paulo, no Rio de Janeiro. Diante de uma platéia seleta, formada por membros do alto escalão da República, figuras proeminentes da sociedade carioca e um batalhão de jornalistas e fotógrafos, Sybil e Niomar trocaram impropérios e agressões.
Breve, a briga entre as duas se converteria numa disputa judicial em torno do patrimônio de Paulo que, em seu testamento, fora muito claro: expressara com todas as letras o desejo de que o jornal fosse conduzido pela segunda mulher e, para isso, legara-lhe a totalidade das ações ordinárias – aquelas que dão ao seu proprietário direito a voto – nas duas sociedades anônimas que formavam o Correio da Manhã. Para Sybil, deixara ações preferenciais, que lhe permitiriam auferir uma participação nos lucros da empresa sem qualquer possibilidade de ingerência na condução do jornal. Quanto ao resto de seu patrimônio, quis que fosse dividido em partes iguais entre as duas. Sybil julgou-se lesada. Representada pelo advogado Dario de Almeida Magalhães, entrou com uma ação contra Niomar que tramitou por seis anos. Em 1969, através de acordo judicial, Niomar adquiriu as ações preferenciais de Sybil, dando à enteada, como compensação, bens imóveis.




[1]Testamento de Paulo Bittencourt, 5 de dezembro de 1965.
[2]Entrevista com Luís Alberto Bahia (04/04/2000).

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - IV


Diante do fato consumado, a ala feminina da família dividiu-se. As mais velhas puseram-se em bloco contra Niomar. Já as irmãs, inclusive a mais velha, Ofélia, a apoiaram, com exceção de Sônia. A questão, porém, é que as duas nunca haviam tido boas relações. Antônio conta um episódio que é ao mesmo tempo esclarecedor da relação entre as irmãs e da passionalidade que faria com que, ao longo da vida, Niomar colecionasse desafetos.

“Sônia tinha uma filha, a Regina, seis anos mais velha que eu e, às vezes, me batia. Um dia, a Niomar soube, ficou danada e deu uma surra nela. (Risos). Sônia foi tomar satisfações e as duas brigaram, romperam relações. A verdade é que Niomar sempre foi uma pessoa realmente um tanto difícil de se conviver. Era uma mulher fascinante, sob vários aspectos, mas a convivência com ela era exaustiva, porque ela exigia muito. Com ela, era preciso ficar permanentemente alerta, porque se ela discordasse de qualquer coisa que a gente dizia, vinha uma discussão, uma briga. Foi assim a vida toda.”[1]

Dos oito aos quatorze anos, Antônio visitou regularmente a mãe, já vivendo com Paulo Bittencourt, primeiro num apartamento na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, depois na Avenida Atlântica. Um incidente um tanto tolo, exemplo acabado da dificuldade de comunicação entre mãe e filho, interrompeu, em meados da década de 50, a relação, que só seria retomada anos depois. Tendo sofrido uma queda sem gravidade, Niomar se submetera a um desastrado tratamento com raios infravermelhos que resultou em queimaduras. Durante a convalescença, Antônio foi visitá-la, como de costume, mas o mordomo, funcionário novo na casa, não o reconheceu e impediu sua entrada, alegando que a dona da casa estava doente.

“Então, eu achei que ela não queria me receber. Virei as costas e não falei mais com ela. Ela aí também deve ter achado que eu não queria vê-la e pronto. Até o momento em que o mal entendido se superou, mas só se superou quando eu já estava noivo, praticamente às vésperas do meu casamento.”[2]

Ao longo da vida, a relação entre Antônio e Niomar foi feita de sucessivos encontros e desencontros. Ingressou a seu convite no jornal do padrasto como vice-presidente em 1961, com a missão expressa de modernizar sua gestão. Bem de acordo com seu temperamento, Niomar queria modificar tudo rápida e radicalmente; Antônio, que trabalhara com o pai em A Vanguarda, advogava a cautela. Em princípio de 1963, após um desentendimento, ela exigiu que Paulo o demitisse. Antônio voltou ao Correio dois anos depois, como chefe administrativo da redação do jornal que, àquela altura, já se encontrava sob propriedade e direção de Niomar. As divergências, no entanto, recomeçaram. Antônio afirma que, enquanto ele defendia a condução do Correio como empresa, Niomar privilegiava sempre o conteúdo jornalístico em detrimento de razões econômicas. Pouco mais de um ano depois, a convivência tornou-se insuportável novamente e Antônio deixou o Correio. Só retornou em 1969 quando, premida por motivos políticos e econômicos, Niomar arrendou o jornal. Lá, ficou até o fim, defendendo os interesses da mãe – mas já sem tê-la por perto.
Em 1942, tão logo a situação legal se definiu, Niomar e Paulo foram viver juntos. Niomar, assim, unia-se ao proprietário de um prestigioso jornal carioca, cuja bravura pessoal, aliada a um corpo de colaboradores composto por estrelas de primeira grandeza, fazia tremer adversários. Através da união com o dono do Correio da Manhã, Niomar ingressou em uma esfera social diferente da sua de origem. Sofisticado cidadão do mundo, Paulo, que sempre passara longas temporadas no exterior, apresentou à jovem esposa os prazeres de viajar. Em 1941, Niomar partiu para aquela que seria a primeira de uma longa série de viagens internacionais com destino aos Estados Unidos, onde se encantou com a riqueza e variedade dos acervos dos museus dedicados à arte moderna. Pela primeira vez pode ver obras que só conhecia por meio de reproduções. Mondrian, Klee, Albérs, Santomaso, Max Bill, Lassaw, entre outros, substituíram em sua predileção os impressionistas que a haviam encantado na adolescência. Nos vinte anos em que estiveram casados, Paulo e Niomar viajaram com freqüência, juntos ou separadamente, para grandes cidades norte-americanas ou capitais européias. Niomar começou a compor uma coleção de arte privilegiada, formada por peças adquiridas no Brasil e exterior. Foi numa viagem aos Estados Unidos que Paulo apresentou-lhe Nelson Rockefeller, milionário e grande mecenas americano, na ocasião presidente do Museu de Arte Moderna de Nova York, do qual fora fundador. Segundo consta, foi ele quem, naquele momento, sugeriu a Niomar a criação de uma instituição congênere no Rio de Janeiro – um projeto que a absorveria por toda a década de 50, cujos detalhes serão examinados no terceiro capítulo desta dissertação.
Em função da atuação de Paulo à frente do Correio e, principalmente, da sua ação como embaixadora do projeto do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no Brasil e exterior a partir de 1950, a vida social de Niomar tornou-se muitíssimo movimentada.[3] Reuniu em torno de si um círculo de relações com membros da alta sociedade nacional e internacional. Políticos, artistas brasileiros e estrangeiros, embaixadores e suas esposas freqüentavam suas grandiosas e concorridas recepções. No exterior, tornou-se objeto de homenagens quando seus esforços no sentido de levantar fundos para a construção do museu começaram a frutificar. Ao longo da vida, foi condecorada dezenas de vezes. Uma lista de convidados garimpada nos arquivos do Centro de Documentação do MAM, atribuída a um cocktail party oferecido por Marcos Romero a Niomar em Nova York, no mês de dezembro de 1956, exibe personalidades como o pintor Salvador Dali; os artistas plásticos norte-americanos  M. Rothko, I. Lassaw e F. Kline; o diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, René d’Harnoncourt, entre outros.
Sua aparência transformou-se, ganhou em elegância e sofisticação. Passou a vestir-se nos mais famosos costureiros da Europa. Em 1959, o casal mudou-se para um apartamento de mil e seiscentos metros quadrados – na realidade, duas unidades de oitocentos metros quadrados cada – localizado no número trezentos e noventa e quatro da Avenida Rui Barbosa, Flamengo. A decoração foi encomendada ao festejado arquiteto Sérgio Bernardes, que criou peças decorativas exclusivas para o local e um conjunto de estantes e gaveteiros em madeira especialmente desenhados para acomodar a então já extensa coleção de arte de sua proprietária. O andar de cima foi convertido em um imenso salão de festas, com uma deslumbrante vista para a Enseada do Flamengo.







[1]Entrevista com Antônio Moniz Sodré Neto (19/06/2000).
[2]Id. Ibidem.
[3]Sobre o MAM ver PARADA, Maurício B. A. A fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro : a elite carioca e as imagens da modernidade no Brasil dos anos 50. Rio de Janeiro: PUC-RJ, dissertação de mestrado - Orientador: Cesar Guimarães, 1993.
(continua)

domingo, 26 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - III

(Continuação da parte II)

Paulo Bittencourt era uma figura fascinante. Filho de Edmundo e Amália Bittencourt, fora enviado a Cambridge, Inglaterra, ao completar dezessete anos, e lá permaneceu por um ano, como estudante. De volta ao Brasil, bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, mas desde muito jovem começou a trabalhar no Correio da Manhã, do qual se tornou redator-chefe. Durante todo o governo Arthur Bernardes, fizera-lhe oposição cerrada pelo Correio, tendo, por isso, cumprido um ano de detenção na Ilha Rasa. Em 1929, o pai lhe passara o comando e propriedade do jornal e, desde então, Paulo fizera valer como nunca antes aquilo que gostava de chamar de “a ortografia da casa”: um conjunto de princípios que norteavam a atuação do jornal, contendo desde regras de linguagem propriamente ditas até – e principalmente – uma postura de insubordinação permanente diante dos poderosos da vez. Era um homem viajado, erudito, rico, bem relacionado. Vivia entre Rio, Nova York e Europa, mas orgulhava-se de tocar ganzá na casa de Pixinguinha. Sempre acompanhado de inseparáveis copo de uísque e cachimbo, estava à frente de um dos mais populares jornais da capital e, naquela posição, era amado e admirado por seus subordinados; temido por seus inimigos.
O interesse foi imediato, de parte a parte. Niomar ganhou o posto de articulista, e passou a visitar regularmente a redação do Correio. Lá, era recebida com especial atenção pelo diretor do jornal, que com freqüência a acompanhava de volta à casa. Paulo contava, na ocasião, quarenta e quatro anos, e tomou-se de encantos pelo temperamento forte e inteligência aguda da moça pequenina e esguia, vinte e um anos mais jovem. Ambos eram casados. Sua mulher era Sylvia de Arruda Botelho Bittencourt, jornalista, seria a primeira mulher brasileira a atuar como correspondente de guerra – embora, segundo divulgam as más línguas, não tenha arredado o pé da capital italiana durante sua estada na Europa conflagrada, em 1944[1]. Sylvia e Paulo tinham uma filha, Sybil.
Hoje, quem passa pelo largo do Boticário, belíssimo conjunto arquitetônico carioca situado no bairro Cosme Velho, próximo à entrada do Túnel Rebouças, vê gravados sobre um prisma retangular de cantaria versos de autoria de uma certa Majoy celebrando a beleza do local. Majoy nada mais era que o pseudônimo com que Sylvia Bittencourt assinava sua coluna de temas variados no jornal de Paulo Bittencourt, proprietário da maioria das casas em estilo neocolonial construídas com material de demolição anos antes pelo pai num local que outrora constituíra parte da chácara do Barão da Glória.
Paulo desquitou-se de Sylvia Bittencourt, um processo que envolveu a partilha do valioso patrimônio do casal. Coube a Sylvia as casas do Cosme Velho. Paulo ficou com uma imensa propriedade em Copacabana – todo o quarteirão compreendido entre a Avenida Atlântica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Avenida Francisco Otaviano, coalhado de dezenas de casas à beira-mar, incluindo o valiosíssimo terreno onde se erguia o antigo Cassino Atlântico. Quanto ao prédio do Correio, foi destinado aos netos do casal, filhos de Sybil, em regime de usufruto para o jornal. Paulo continuou, porém, detendo o controle acionário das duas empresas que compunham o Correio: a Correio da Manhã S/A e a Corman Publicidade S/A.
Quanto a Niomar, o fim de seu casamento era, agora, questão de tempo. No final da década de 30, Hélio Moniz Sodré Pereira tomou uma decisão desastrosa: trouxe da Bahia, para morar com ele e Niomar no apartamento da Avenida Atlântica, seu pai, Jerônimo, e sua mãe, Cora. Na presença dos sogros, Niomar tornou-se ainda mais impaciente e a relação, que já se mantinha de forma precária havia tempos, deteriorou-se rapidamente. Em 1940 – o ano da morte de Moniz Sodré – o casal por fim separou-se. Hélio e seus pais se mudaram, deixando Niomar e o filho Antônio, então com seis anos, no apartamento de Copacabana. Não se pode afirmar exatamente quando, ou em que circunstâncias, a relação entre Niomar e Paulo tornou-se pública. Seja como for, Hélio ficou enfurecido. Muitos anos depois, ainda não se conformara totalmente com o fim do casamento, o sentimento de humilhação pública a que Niomar o tinha exposto. Seguiu-se à separação uma feroz batalha judicial pela guarda de Antônio, que se arrastou pelos dois anos seguintes, com acusações mútuas.
Ao final, Niomar perdeu o processo. Num tempo em que não havia, ainda, divórcio no país, e que as mulheres separadas sofriam sob pesado estigma, Niomar era não mais, aos olhos da Justiça e da sociedade, que uma adúltera. Aos oito anos, Antônio passou a morar com o pai e os avós. Foi praticamente criado por Cora, a avó paterna. Passou a visitar periodicamente a mãe, seguindo estritamente os dias e horários de visita determinados pela Justiça.
Antônio conta que o desquite litigioso, no início da década de 40, trinta e cinco anos antes da legalização do divórcio no país, foi uma experiência traumática. É fato que o estatuto da mulher passava, naquele período, por profunda transformação, em todo o mundo. Contudo, e por isso mesmo, Niomar viveu num tempo de violenta reação aos novos padrões de relacionamento entre os gêneros. As publicações destinadas ao público feminino em sua maioria veiculavam um modelo de mulher feito de abnegação, paciência e compreensão. Recomendavam-se, nelas, a manutenção dos laços conjugais sob quaisquer circunstâncias, e a total subordinação afetiva às conveniências sociais, em nome do sagrado dever de educar filhos saudáveis e bem ajustados.[2] Quanto à legislação cível editada no país no mesmo 1916 em que nascera Niomar, igualava a mulher em termos de capacidade jurídica aos pródigos, menores de idade e índios[3], dando aos maridos a prerrogativa de administrar os bens do casal e da mulher, bem como de tomar a iniciativa de qualquer ato legal referente à família. Foi exatamente com base nessa legislação que Niomar perdera a guarda do filho pequeno para o ex-marido, após decidir reconstruir sua vida afetiva.

(continua)



[1]SANDRONI, Cícero. Cosme Velho. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Rioarte, 1999. (p. 65-66)
[2]Sobre o tema ver BASSANEZI, Carla. Revistas femininas e o ideal de felicidade conjugal (1945-1964). In: VÁRIOS. Caderno Pagu - nº 1. Campinas: IFCH/Unicamp, 1993. Ver também da autora Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher (1945-1964). São Paulo: USP, dissertação de mestrado, 1992.
[3]MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil - vol. 3. São Paulo: Cia. das Letras, 1998 (p. 375).

sábado, 25 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - II


Até que veio a adolescência, propícia às manifestações de rebeldia mesmo entre personalidades mais pacíficas e estáveis. Apesar da formação em instituições de ensino católicas, Niomar não se deixara envolver pelo universo da religião. Circundada pela rica biblioteca do pai, encantou-se, antes, pelas belas letras. Começou a escrever contos, crônicas, poesias e peças teatrais. Uma biografia sua do poeta D’Annunzio chegou mesmo a ser publicada no período, no Rio de Janeiro, como parte de uma coleção sobre personalidades mundiais. Ao mesmo tempo, começou a interessar-se por artes plásticas, desenvolvendo especial predileção por Van Gogh e Gauguin. Moniz Sodré orgulhava-se dos pendores artísticos e do temperamento determinado da filha. Em 1932, sobreveio a ruptura.
Aos quinze anos, Niomar apaixonou-se pelo primo Hélio Moniz Sodré Pereira, filho de uma irmã de seu pai, Cora Moniz Sodré Pereira, e de Jerônimo Sodré Pereira. O namoro foi mantido em segredo pelo casal pois, ao que parece, Moniz Sodré tinha planos diferentes para a filha. Um dia, o pai os flagrou juntos na sala de estar da casa da família e, aborrecido, expulsou o rapaz de casa. Em depoimento para o livro de Jefferson Andrade, Niomar conta que, naquele momento, tomou uma decisão que mudaria para sempre sua vida: fugiu  de casa, indo instalar-se num hotel do centro da cidade do Rio de Janeiro. Mandou, então, avisar ao pai que não retornaria à casa sem antes obter a autorização para que se realizasse o casamento. Estabeleceu-se o impasse: só em setembro Niomar atingiria a idade mínima prevista pela legislação brasileira para o casamento – dezesseis anos. O pai mandou que esperasse. Niomar não voltou para casa paterna: foi viver com a irmã Sônia, já casada, até que, em 30 de setembro daquele ano, casou-se com o primo Hélio, e transferiu-se para Salvador.
O casamento consangüíneo é uma prática freqüentemente encontrada em famílias de elite no passado colonial brasileiro. Entendido o matrimônio como peça fundamental de um sistema de alianças em cuja gênese está a falta de capilaridade das instituições do Estado brasileiro de então e a conseqüente hipertrofia do poder local centrado na figura do patriarca, era de se esperar que, num quadro de escassez de boas  famílias – aquelas às quais unir-se traduzir-se-ia em vantagens políticas, sociais e econômicas –, algumas poucas famílias optassem por ligar-se entre si por meio de casamentos. E que, uma vez reunidas, reafirmassem suas alianças por meio de sucessivas uniões consangüíneas. Assim, mesmo desaparecidas as circunstâncias que o engendraram, o casamento entre primos e primas, tios e sobrinhas, rejeitados em muitas culturas – inclusive na contemporânea, sob argumentos geneticistas – tornaram-se plenamente aceitos, em especial na elite nordestina.
O casamento entre primos foi uma constante na família de Niomar. Além da própria ter-se casado com um primo irmão, sua irmã mais velha, Ofélia, uniu-se com Edmundo Moniz, filho do ex-governador da Bahia Antônio Moniz Ferrão de Aragão, por sua vez primo de Antônio Moniz Sodré de Aragão, pai da noiva. Sônia, a segunda, casara-se com o irmão de Edmundo, Heitor Moniz. Por fim, poucos anos depois, a irmã mais nova, Nígia, casou-se com Evandro Correia de Menezes, também primo. Ao longo das décadas, os sobrenomes Moniz, Barreto, Aragão, Ferrão, Castelo Branco, Pereira, Sodré, Argolo e Menezes, entre outros, combinaram-se e recombinaram-se sucessivamente. Niomar, que fora registrada de Argolo Moniz, tornara-se, por matrimônio, Moniz Sodré Pereira. O Sodré que se tornaria parte integrante do nome com que Niomar apresentou-se à sociedade anos depois viera-lhe não pela via paterna, mas pelo matrimônio.[1]
Restabelecida a relação com o pai, Niomar voltou de Salvador com o marido. Sendo ambos ainda muito jovens, foram viver na casa de Moniz Sodré, no elegante bairro de Laranjeiras. Lá, Niomar teve seu único filho, batizado com o nome do avô: Antônio Moniz Sodré Neto. Hélio formou-se em Direito e ingressou no departamento jurídico do Banco da Prefeitura, o qual acabaria por chefiar. Mais tarde, por incumbência da instituição, atuou como interventor no jornal carioca A Vanguarda, um grande devedor do Banco, que, a despeito dos esforços de saneamento financeiro, acabou abrindo falência. Já maduro, ingressou por concurso na magistratura, e aposentou-se como juiz. Segundo depoimento do filho Antônio, Hélio era um sujeito pacato, com pendores intelectuais, cuja maior ambição era a de que a vida transcorresse serenamente em sua casa, em meio à família, e os livros.
No começo da década de 30, Niomar, Hélio e o pequeno Antônio mudaram-se para um apartamento na Avenida Atlântica, de frente para o mar de Copacabana. Aparentemente, tudo corria para Niomar de acordo com o ideal de felicidade preconizado na época para mulheres de classe média: era casada, tinha uma marido estável e próspero e um filho saudável. Contudo, ela estava insatisfeita. Queria da vida mais que uma existência mediana, devotada ao lar e à família. Ela mesma contaria ao neto, Mauro, que, em 1937, cansada de estar em casa, havia procurado o ministro da Justiça, José Carlos Macedo Soares, em busca de emprego. O ministro achou graça, e admitiu-a como sua auxiliar informal nos cinco meses em que esteve à frente da pasta. Dois anos depois, decidida a ingressar na imprensa, pediu ao pai que lhe apresentasse a Orlando Dantas, proprietário do Diário de Notícias, um jornal que desfrutava, na época, de grande prestígio, devido à sua heróica resistência durante o Estado Novo, que agonizava. Moniz Sodré, porém, não o conhecia; em compensação, mantinha boas relações com a família Bittencourt, proprietária do Correio da Manhã. Durante o governo Hermes da Fonseca, defendera Edmundo Bittencourt, fundador do jornal, das acusações que sobre ele pesavam. Chegara mesmo a atuar como diretor interino da folha carioca, enquanto o amigo esteve preso. Moniz Sodré procurou o filho do fundador do Correio, Paulo Bittencourt, que, desde 1929 dirigia o jornal, levando consigo Niomar e um exemplar do livro sobre o poeta D’Annunzio.




[1]Sobre casamentos consangüíneos ver DEL PRIORE, Mary. A família no Brasil colonial. Cidade: Moderna, 1999. Ver também FALCI, Miridan Knox Falci. Mulheres do sertão Nordestino. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesp, 1997 (p. 258)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - I

A tarefa de resgatar Niomar dos pés de página da história enfrenta a dificuldade adicional de não se saber por onde começar. Priorizar a sua determinação pela construção do MAM, o enfrentamento da Ditadura pelo Correio da Manhã ou sua trajetória de mulher à frente do seu tempo? Como contar esta história? Na pesquisa bibliográfica que estamos começando a realizar, temos encontrado, aqui e ali, fragmentos, fatos pitorescos e relatos adjetivados, que permitem que nos aproximemos de determinados ângulos de Niomar. Dentre o material já consultado, nos chamou a atenção a Dissertação de Flávia Bessone, "DE COADJUVANTES A PROTAGONISTAS: A trajetória de três mulheres que trocaram os salões de sociedade pelo controle de grandes jornais brasileiros nas décadas de 50 e 60". Este texto apresenta os contornos de uma Niomar que não se define apenas por suas realizações, mas como uma pessoa inteira. Com a devida autorização da autora, vamos publicar (em partes) o Capítulo III  desta dissertação e, assim, ir ajudando os leitores do blog a entender porque escolhemos Niomar.

NIOMAR: A LIBERDADE A QUALQUER PREÇO
 Por: Flávia Rocha Bessone Corrêa

Banho de camisola, não!
Niomar era apenas uma menina, mas já não aceitava autoridade facilmente, menos ainda quando a ordem lhe parecia tola, ou irracional. Por isso, sua temporada no internato do Colégio Sacré Couer de Jésus, instituição aristocrática destinada à formação de meninas de elite no Rio de Janeiro, foi curta. De nada lhe valeu, naquele educandário católico e severo, a influência do pai, o ilustre deputado baiano Antônio Moniz Sodré. Tampouco contou a seu favor a origem da falecida mãe, Maria de Teive Argollo, descendente de D. Rodrigo Argollo, nobre castelhano que aportou na Bahia em 1549 na comitiva de Tomé de Souza, primeiro governador da província. As regras eram claras e extensivas a todas as alunas; quem não se adaptasse, que procurasse outra instituição. Sendo assim, Niomar foi convidada a se retirar da escola.
Ao ser expulsa do Sacré Couer, a futura proprietária do Correio da Manhã inaugurava a coleção de atos de insubordinação que, ao longo da vida, foi ampliando, a qual lhe valeu uma imagem de rebeldia e independência que levaria ao paroxismo quando permitiu que seu jornal se engajasse abertamente numa feroz campanha contra as arbitrariedades cometidas no país, atraindo para si a belicosidade de um regime discricionário que se esforçava por manter uma aparência democrática para uso externo.
O episódio do banho foi narrado pela própria Niomar aos jornalistas Jefferson Andrade e Joel Silveira, que o reproduziram no livro Um jornal assassinado – a última batalha do Correio da Manhã . Anos antes, ela o havia contado a seu neto mais novo, Mauro, com quem desenvolveu, na velhice, uma relação de confiança absoluta. Em que medida a narrativa corresponde à realidade, é difícil saber, pois, a julgar pela quantidade de episódios destacando a bravura da biografada contidos no livro de que, como conta Joel Silveira, ela própria foi a fonte principal, Niomar não apenas não se preocupava em desfazer a imagem insubmissa como, também, procurava sublinhá-la o mais possível. Oitenta anos se passaram, e o velho Colégio Sacré Coeur, no Alto da Boa Vista, há muito fechou suas portas. Sobrou o prédio imponente, obra do arquiteto Morales de Los Rios, de pé direito alto, corredores intermináveis e piso revestido de ladrilho hidráulico desbotado pelo tempo.
É fato, porém, que Niomar esteve pouco tempo no Sacré Coeur. Ao que tudo indica, Moniz Sodré teve de conformar-se com o gênio forte da filha e matriculou-a no Colégio Sion do Rio de Janeiro, igualmente católico e destinado a moças de famílias abastadas. Ali, pelo menos o problema do banho estava resolvido. O colégio era um externato; desde que aparecesse impecavelmente limpa e uniformizada, cada menina que fizesse como bem entendesse sua família no momento da higiene diária. Contudo, Niomar também terminou abandonando o Sion antes de graduar-se: em 1929, decidiu seguir o pai na Bahia, durante sua campanha para deputado federal. Ou bem o pai era um liberal, conforme ela própria relataria a Jefferson Andrade, ou bem não tinha forças para resistir ao temperamento forte da filha.
Na ocasião, Moniz Sodré foi eleito, e, embora tenha perdido o mandato um ano depois, por ocasião da Revolução de 30, esta última vitória nas urnas foi o corolário de uma carreira política marcada pelo êxito. Descendente de titulares da nobreza brasileira, Antônio era um dos muitos filhos de Egas Carlos Moniz Sodré de Aragão, médico, professor catedrático pela Faculdade de Medicina da Bahia e, também, proprietário de um engenho de açúcar que, com o fim da escravidão, desapareceu. Não herdou do pai o gosto pela Medicina ou pelas atividades rurais. Estudou Direito, e fez uma brilhante carreira como advogado criminalista, catedrático e jurista. Mas a política era sua paixão. Em 1909, exerceu pela primeira vez um cargo eletivo, como deputado estadual na Bahia. Três anos depois, eleito deputado federal e já casado com Maria de Teive Argollo, mudou-se para o Rio de Janeiro. Exerceu o cargo por dois mandatos consecutivos, seguidos de um terceiro, como senador, a partir de 1920.
Em meados de 1916, já instalado com a mulher e duas filhas, Ofélia e Sônia, no aristocrático bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, chegou à sua casa a notícia da morte do sogro, Miguel de Teive Argollo, engenheiro responsável pela construção da Estrada de Ferro Bahia e Minas. A mulher, Maria, estava novamente grávida. A família deslocou-se imediatamente para Salvador. Pouco tempo depois, Niomar nascia na terra de seus pais, um pouco por acaso. Sua mãe ainda deu à luz uma quarta menina, Nígia, mas não viveria tempo suficiente para ver as filhas crescerem. Em 1922, morreu, deixando órfãs quatro filhas menores. Coube à mais velha, Ofélia, então com apenas quinze anos, a tarefa de auxiliar o pai na educação das irmãs. Privada da mãe, Niomar aproximou-se de Moniz Sodré, a quem amava e admirava.
(continua)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Prefácio

Não conheci Niomar. Ela não quis.
Paris era a última cidade em que eu ficaria antes de embarcar de volta para o Rio depois de dois meses de mochileira na Europa. Ali, teria uma semana para conhecer a cidade e encontrar o meu namorado que tinha ido acompanhando a avó. Encontrei em Paris a primavera e os preparativos para o centenário da Revolução Francesa, mas não Niomar. Uma doença, mais inventada do que outra coisa, foi o motivo para não receber, em sua casa, a namorada do neto.
Eu tinha curiosidade.  No Rio, sempre tinha faltado oportunidade. Mauro a resguardava. Não sei se ele sabe ao certo de que.  A história sobre a forma que Niomar tratara sua mãe quando se conheceram fazia parte do folclore sobre o fracasso do relacionamento entre seu pai e sua avó.  Preservar o relacionamento com a difícil  Niomar, provavelmente, passava por evitar situações nas quais pudesse se magoar com ela.
Mas as histórias sobre Niomar, sobre seus quadros, suas esculturas, seu jornal e seus incêndios instigavam demais minha curiosidade. Mais do que conhecer a avó do meu namorado, eu queria conhecer um personagem marcante do século XX em nosso país. E mulher. Mas acima de tudo, queria ver o apartamento de Paris, com a única coleção de obras montada por ela que ainda permanecia intacta - depois dos incendios do MAM e de seu apartamento no Rio. As histórias de várias obras eu já conhecia, e pelo ponto de vista de um neto fiel e admirado. Faltava ver, cheirar e intuir cenário e personagem com os meus próprios sentidos.
Faltou.
Por conta de desencontros da vida, acabei nem prestando atenção à sua morte em 2003, após uma luta perdida contra o Alzheimer.
Recentemente, com a amizade com Mauro devidamente restaurada, voltei a pensar nela. Impossível conviver com ele e não pensar nela. Ele aponta uma escultura que fica na mesa ao lado do sofá e diz que sobreviveu ao incêndio da Rui Barbosa e que, por isso, o bronze está ainda tão escuro.  O acrílico próximo ao chão tem as fotos dos presos políticos que foram trocados pelo embaixador norte-americano.
Mauro relata, nas obras que herdou da avó, trechos da história recente de nosso país. Uma história, na qual sua avó, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, não foi uma simples figurante.
Contraditóriamente, pouco se fala sobre ela. Uma pesquisa no Google vem com muito pouca informação. Um livro sobre Calder tem apenas algumas notas, o que não faz jus a sua importância à frente do MAM e com o fato de até hoje estar no apartamento de Paris um guache de Calder para Niomar, inspirado no relato que ela lhe fizera de se sentir num circo cercada de palhaços, referindo-se ao Governo Militar depois do AI-5.
Niomar permanece esquecida na história de nosso país. Curioso é que também ela esqueceu. A doença que consumiu seu cérebro nos últimos anos de sua vida tem a característica de apagar memórias recentes. Os grupos que governaram nosso país desde 1964 fizeram o mesmo com nossa história. Restaurar a memória recente do Brasil é possível e inseparavel de recolocar Niomar no lugar que realmente ocupou nesta história.

C. G.
21/08/2012