terça-feira, 28 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - V

(parte IV)

Niomar tornou-se personagem cativa do colunismo social carioca. Além disso, tratada pela imprensa como especialista na matéria, pontificava sobre arte moderna nas seções especializadas dos jornais do Rio de Janeiro, inclusive nos concorrentes ao Correio da Manhã de Paulo Bittencourt. O Museu garantiu-lhe identidade própria na vida pública nacional. Sua atuação no campo das artes plásticas rendeu-lhe mais de vinte prêmios e condecorações, no Brasil e exterior. Em 1968, já sob forte pressão do governo militar pela oposição implacável que o Correio da Manhã, sob sua direção, fazia ao regime, foi uma das poucas senhoras da sociedade carioca presentes na recepção à Rainha Elisabeth II, durante a estada de Sua Alteza no Rio de Janeiro. Com o casamento e as oportunidades que abriu para sua atuação no ramo das artes plásticas, Niomar tornou-se uma celebridade, uma grande dama brasileira no jet-set internacional.
Entretanto, ressaltar as oportunidades de ascensão econômica e social que o casamento com Paulo eventualmente proporcionou a Niomar não implica afirmar que seu relacionamento não tenha sido marcado por intensa emoção. Para viverem juntos, tiveram que se submeter a processos dolorosos de separação, com todas as conseqüências pecuniárias e emocionais que estes acarretaram. Niomar perdeu a guarda de Antônio; Paulo afastou-se de Sybil. Optaram pelo desquite quando seu custo social era elevado, e de fato nenhum dos dois parecia indiferente a ele. Prova disso foi que se casaram no exterior – o único e precário recurso de legitimação social à união de casais impedidos de contrair matrimônio pelas leis brasileiras. Casaram-se na França, quando a moda, entre gente de menos posses, era fazê-lo no Uruguai, in loco ou na embaixada uruguaia, uma opção ainda mais em conta. A música de Billy Blanco, gravada por Dóris Monteiro na década de 50, é exemplar da relativa aceitação das ligações deste tipo pela sociedade brasileira no período:

“Você sabe, eu não aceito casamento no Uruguai.
Se você não se portar direito,comigo você não sai.
Você só me dá desgosto, fica nesse vai-não-vai.
Se você quer um encosto, vá pra casa do seu pai.”

A enorme influência política de Paulo Bittencourt e do Correio, sua posição econômica e social privilegiada, seu trânsito no grand-monde internacional e internacionalizado o puseram a salvo da estrita moralidade pequeno-burguesa, neutralizando em parte a reação social contra seu segundo casamento – ainda que não o suficiente para, por exemplo, evitar que a Justiça tomasse de Niomar a guarda do filho Antônio. Em seu testamento, pelo qual fez da companheira herdeira da metade disponível de todos os seus bens (pelas leis brasileiras, 50% do patrimônio de um indivíduo obrigatoriamente passam a pertencer, por sua morte, a herdeiros necessários, como filhos e pais), protesta contra a legislação brasileira:

“(...) Pelo outorgante testador, Paulo Bittencourt, que se acha em seu perfeito juízo e no gozo pleno de suas faculdades intelectuais (...), me foi dito que (...) se casou com Sylvia Botelho, de quem se desquitou judicialmente, tendo havido, de seu consórcio, uma única filha de nome Sybil; que, depois do desquite, casou-se, em França, com Niomar Moniz Sodré, também desquitada judicialmente, e com ela tem vivido maritalmente desde então; que, para realizar um casamento válido na França, ele testador e Niomar se divorciaram na Suíça de acordo com as leis locais e em processos regulares; que considera Niomar Moniz Sodré sua mulher e só a impossibilidade decorrente da legislação do seu país o impede de fazer reconhecer, para os efeitos da lei civil, esse seu casamento no Brasil.”[1]

Paulo e Niomar viveram uma relação de amor e, também, de grandes conflitos. O temperamento intempestivo de ambos contribuiu para que o relacionamento fosse feito de momentos de crise aguda, seguidos de reconciliações igualmente espetaculares. Luís Alberto Bahia, jornalista histórico do Correio da Manhã, no qual ingressou como repórter em 1940 e cuja redação chefiou entre 1959 e 1962, lembra as relações entre eles como muitas vezes difíceis.

“Niomar tinha grande ascendência sobre o Paulo. Paulo era um homem extremamente valente na vida pública, não tinha covardias nem tibiezas, mas com as mulheres era fraco. Deixava-se tutelar por elas. A primeira mulher dele, Silvia Bittencourt, que escrevia uma coluna política, na qual se assinava como Majoy, era o terror do jornal.”[2]

Uma das maiores crises conjugais de Paulo e Niomar ocorreu durante o segundo governo Vargas, quando o arcebispado do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Moderna da cidade disputaram uma mesma faixa de terra no recém-construído aterro do Flamengo. Em 1954, Getúlio Vargas decidiu entregar o terreno à Igreja em caráter provisório para, depois, destiná-lo à arte moderna – uma decisão que implicaria grande atraso nas obras do museu. Niomar foi à loucura. Escreveu um artigo atacando violentamente Getúlio e o pôs nas mãos de Paulo. Este, prudentemente, suavizou o tom da matéria antes de publicá-la. Como expressão de seu profundo desagrado, Niomar embarcou – sozinha – para uma temporada européia, sem data para retorno. Meses depois, Paulo pediu que a mulher fosse até Paris, para que pudessem comemorar juntos o aniversário dela. A reconciliação foi selada com um presente especial: um  apartamento na capital francesa, próximo ao Trocadero.
O ex-redator-chefe analisa a atitude de Niomar diante do Correio da Manhã:

“Ela não tinha ambições políticas próprias. Mas engajou-se no projeto do Museu de Arte Moderna de tal maneira que passou a ver a linha do jornal em função da criação se sua própria obra, que era o Museu. Quer dizer, ela sacrificou muito as relações dela com o Paulo e com o jornal em função do projeto dela, que não era sempre coincidente com o do jornal.”

Em 1961, Paulo começou a apresentar sinais do câncer de pulmão que, dois anos depois, o mataria. Daquele momento em diante, sua vida converteu-se num périplo doloroso e inútil por hospitais e médicos no exterior. O proprietário do poderoso Correio da Manhã morreu em agosto de 1963, em Estocolmo, Suécia, aos sessenta e oito anos, onde se submetera a um tratamento que Niomar considerou frio e desumano, longe de casa, dos amigos, do Rio de Janeiro. Muitos anos depois, ainda referia-se ao hospital sueco com verdadeiro horror. Foi o bastante para que se rebelasse contra Sybil, que sugerira e defendera o tratamento. Os atritos entre madrasta e enteada começaram já durante o velório de Paulo, no Rio de Janeiro. Diante de uma platéia seleta, formada por membros do alto escalão da República, figuras proeminentes da sociedade carioca e um batalhão de jornalistas e fotógrafos, Sybil e Niomar trocaram impropérios e agressões.
Breve, a briga entre as duas se converteria numa disputa judicial em torno do patrimônio de Paulo que, em seu testamento, fora muito claro: expressara com todas as letras o desejo de que o jornal fosse conduzido pela segunda mulher e, para isso, legara-lhe a totalidade das ações ordinárias – aquelas que dão ao seu proprietário direito a voto – nas duas sociedades anônimas que formavam o Correio da Manhã. Para Sybil, deixara ações preferenciais, que lhe permitiriam auferir uma participação nos lucros da empresa sem qualquer possibilidade de ingerência na condução do jornal. Quanto ao resto de seu patrimônio, quis que fosse dividido em partes iguais entre as duas. Sybil julgou-se lesada. Representada pelo advogado Dario de Almeida Magalhães, entrou com uma ação contra Niomar que tramitou por seis anos. Em 1969, através de acordo judicial, Niomar adquiriu as ações preferenciais de Sybil, dando à enteada, como compensação, bens imóveis.




[1]Testamento de Paulo Bittencourt, 5 de dezembro de 1965.
[2]Entrevista com Luís Alberto Bahia (04/04/2000).

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